Os movimentos certos Understand article

Tradução de Isabel Queiroz Macedo. Os movimentos das células são importantes na saúde e na doença, mas a sua velocidade é o ponto crucial no Campeonato do Mundo de Células 2013, organizada por Daniel Irimia.

Célula de cancro da mama
Imagem cortesia de domínio
público, fonte: Bruce Wetzel e
Harry Schaefer/National Cancer
Institute)

Pode não ser o desporto mais emocionante, mas o Campeonato do Mundo de Células é o equivalente aos Jogos Olímpicos para biólogos. A vencedora deste ano foi uma linhagem de células de cancro da mama que atingiu velocidades de 50 μm.h-1. Pode parecer fútil, mas a motilidade celular tem um papel importante na saúde e na doença; é um factor de relevo no cancro, na resposta imunitária, na cicatrização, no desenvolvimento embrionário e em outras funções biológicas. Mas os cientistas ainda não compreendem muito bem o processo e não há por enquanto medicamentos específicos para acelerar ou retardar o movimento celular.

Cylindrospermum é um
género de cianobacteria
filamentosa presente em
ambientes terrestres e
aquáticos. 

Imagem de domínio público.
Fonte: Wikimedia

As células precisam de se mover por várias razões – encontrar alimento, interceptar ameaças, escapar a ambientes inadequados ou colonizar novos ambientes. Algumas células, incluindo células de esperma e muitas bactérias, podem nadar rapidamente com ajuda de flagelos.

Outras, como as participantes no campeonato, movem-se de um modo menos dramático, criando extensões citoplasmáticas, pseudópodes, como dedos rastejantes que aderem a uma superfície e arrastam o resto da célula (ver figura 1). Células que se movimentam deste modo podem percorrer 1-2 vezes o seu comprimento por hora. Para termo de comparação diremos que a velocidade de um caracol é cerca de 20 vezes o seu comprimento por hora e que o recorde de Usain Bolt nos jogos olímpicos de 2012 foi equivalente a 18 000 vezes a sua altura por hora.

Usain Bolt no Bolt Crystal
Grand Prix, em 2009

Imagem cortesia de Paul Foot

Este movimento pode não ser rápido, mas é incrivelmente importante. Por exemplo, durante o desenvolvimento embrionário, movimentos celulares orquestrados com precisão permitem a formação dos níveis distintos de tecidos que depois crescem até formar órgãos maduros, sistemas ou partes do corpo. Migração celular incorrecta durante o desenvolvimento embrionário pode dar origem a incapacidades várias e malformações, incluindo espinha bífida. As feridas cicatrizam à medida que células tronco especiais se movem para o local da lesão para regenerar vasos sanguíneos, ligar os tecidos e construir nova pele.

O Campeonato do Mundo de Células 2013

Clique na imagem para
ampliar. Figura 1: O
progresso da célula mais
rápida, da linha celular MDA
MB 231 S1 de células de
cancro da mama, durante o
Campeonato do Mundo de
Células 2013. O núcleo da
célula foi corado de azul
(corante Hoecscht). 

Imagem cortesia de Daniel
Irimia, Massachusetts General
Hospital

A “pista de corrida” é um intricado labirinto de canais com apenas 10 μm de largura, organizados numa placa concebida para o efeito. Foi criada usando uma técnica denominada litografia suave e as paredes do labirinto são de silicone, um material inerte que pode ser moldado em formas precisas e intrincadas.

Laboratórios de todo o mundo foram convidados a enviar uma amostra das suas células mais rápidas para competir na corrida. As células foram marcadas com um corante azul não tóxico e colocadas num dos extremos do labirinto.

A maioria das células move-se apenas em resposta a estímulos específicos – por exemplo, em direcção a nutrientes – mas todas as células em competição eram células cancerosas, que se movem autonomamente nos canais do labirinto e são em geral mais rápidas que células não cancerosas.

Células sanguíneas com
glóbulos brancos ao centro.

Imagem cortesia de domínio
publico. Fonte: Bruce Wetzel e
Harry Schaefer/National Cancer
Institute (Instituto Nacional do
Cancro)

As placas foram fotografadas de 15 em 15 minutos durante 24 horas e o vencedor foi a cultura com maior número de células a atingir a meta, após o percurso de 600 μm. Pode ver algumas das células em acção no website do Campeonato Mundial de Células 2013w1. Em cenas que lembram o conto clássico “A Lebre e a Tartaruga “, a cultura vencedora, uma linhagem de células de cancro da mama denominada MDA MB 231 S1, não foi a mais rápida, mas foi a mais perseverante. Uma linha de células de sarcoma (cancro do tecido conjuntivo), MFH 137, foi lenta no início, ou demorou a partir, e acabou por ser a mais rápida, mas menos células cruzaram a linha de chegada, o que a relegou para o segundo lugar.

O Campeonato do Mundo de Células teve agora a sua terceira edição. No desafio deste ano os organizadores colocaram as células em labirintos com cantos e becos para testar também a inteligência” das células. Consegue-se assim uma representação mais rigorosa do que acontece in vivo, onde as células migrantes têm de se esgueirar através de espaços intercelulares e de se orientar num espaço tridimensional.presentation of what happens in vivo, where migrating cells have to squeeze through intercellular spaces and orient themselves in three dimensions.


 

Na saúde e na doença

Clique na imagem para ampliar.
Figura 2: Detalhes de
motilidade celular. a) Formação
de um pseudópode, uma
protuberância da membrana,
na margem  frontal (à direita)
da célula; b) o pseudópode
liga-se à superfície através de
proteínas de membrana
chamadas integrinas
(encarnado); c) o corpo
principal da célula é
impulsionado para a frente; e
d) a margem posterior da
célula desliga-se da superfície
e o ciclo recomeça.

Imagem cortesia de Alexandre
Saez via Wikimedia Commons

Não nos surpreende que a vencedora desta competição tenha sido uma célula de cancro da mama. As células cancerosas estão entre as células de mamíferos mais rápidas. O cancro tem tendência a espalhar-se a partir do local do tumor inicial e a começar a crescer em outras partes do corpo, num processo denominado metástase. Enquanto outras células móveis se movem aproximando-se ou afastando-se de determinado estímulo (como nutrientes ou luz), as células cancerosas fazem movimentos autoguiados para escapar a pequenos espaços e parecem não saber quando parar. Uma célula cancerosa pode percorrer 10 cm entre um tumor primário na mama e um nódulo linfático próximo, onde se aloja, em apenas 1 mês. O cancro já disseminado é muito mais difícil de tratar e muitas vezes é fatal, pelo que encontrar maneiras de parar o movimento das células cancerosas pode salvar vidas.

Há situações em que é benéfico encorajar as células a moverem-se mais depressa. Os glóbulos brancos são uma “peça” fundamental na nossa resposta imunitária. Eles movem-se rapidamente para locais de infecção para ingerir e destruir micróbios, escolhendo activamente o caminho mais curto para o seu destino. Pacientes com queimaduras graves são mais vulneráveis a infecções, aparentemente porque os seus glóbulos brancos perdem a bússola interna e são incapazes de se orientar, retardando o progresso em direcção ao patogénio. Portanto, medicamentos que aumentem a velocidade ou a eficiência do direccionamento de glóbulos brancos podem ser muito úteis, tanto na prevenção como no tratamento de infecções.

No entanto, aumentar a velocidade de glóbulos brancos nem sempre é desejável. Nas doenças inflamatórias crónicas, como artrite reumatóide ou asma, os glóbulos brancos interpretam erradamente sinais químicos e migram para tecido saudável, causando dor, inflamação e lesões. Para estes casos seria desejável encontrar uma maneira de suprimir esta migração de células.

O caracol de lábio branco
(Cepaea hortensis)

Imagem cortesia de Mad Max,
Kirkland, Washington

Há ainda muitas lacunas na nossa compreensão de como e porquê as células se movem. Daniel e a equipa organizadora esperam que o Campeonato do Mundo de Células aumente a reconhecimento da importância da motilidade celular e incentive a cooperação entre biólogos e engenheiros. Eles também esperam que o seu trabalho leve ao aparecimento de métodos padronizados de medição de motilidade celular, tornando mais fácil o estudo do efeito de drogas – ou de outros meios – no controlo deste movimento.

Depois das corridas os competidores avaliam o seu desempenho e começam a planear o desafio seguinte. Os organizadores já definiram a data do próximo Campeonato do Mundo de Células: 14 de novembro de 2014. Na próxima corrida os glóbulos brancos também são elegíveis e poderão competir com células cancerosas, numa batalha épica do bem contra o mal. O bolor limoso Dictyostelium discoideum tem a sua própria corrida, a 21 de março de 2014. Pode inscrever-se em World Cell Race websitew1.

Se quiser investigar a migração celular em sala de aula, bolores limosos, especialmente Dictyostelium, e glóbulos brancos são duas boas opções para começar. Dictyostelium é de crescimento rápido e é fácil de manter em Agar Nutriente à temperatura ambiente. Os glóbulos brancos são fáceis de observar ao microscópio óptico e o sangue de cavalo é fácil de obter em fornecedores de material de laboratórios escolares.

Coloque no microscópio amostras de Dictyostelium ou de sangue de cavalo e tire fotografias em intervalos regulares com uma câmara fixa. Em seguida compare as imagens para detectar o movimento das células. Uma fonte de calor suave colocada de um lado da lâmina, como um candeeiro de mesa com lâmpada incandescente, pode ajudar, visto que ambos os tipos de células respondem a alterações de temperatura (termotaxia) e Dictyostelium reage à luz (fototaxia).


Web References

Resources

Author(s)

Daniel Irimia é professor assistente no Massachusetts General Hospital e Harvard Medical School, EUA, e estuda o efeito da motilidade celular na saúde e na doença. Os seus interesses vão do papel da migração de glóbulos brancos na protecção de tecidos contra micróbios à importância da migração de células cancerosas na disseminação por invasão e por metastização. Para estes estudos está a conceber ferramentas robustas em microescala para medir com elevada precisão a migração de células em amostras clinicamente relevantes. Da equipa organizadora do Campeonato do Mundo de Células fazem também parte Matthieu Piel, do Institut Curie e do CNRS, em França, e Elisabeth Wong e Bashar Hamza, ambos do Massachusetts General Hospital.

Sarah McLusky é escritora de ciência freelancer, editora e consultora de educação. Tem um doutoramento em fitopatologia e ensina bioquímica em Newcastle College, Reino Unido.

Review

Este cativante artigo aborda um tema básico de células animais: a sua motilidade. Embora seja amplamente conhecido que as células animais podem mover-se, “é importante conhecer melhor a motilidade celular para entender a saúde e a doença”, como afirmam os autores. Temos aqui um recurso valioso para aprender mais sobre a motilidade, com uma abordagem divertida e motivante. A ideia de um Campeonato do Mundo de Células pode surpreender-nos à primeira vista, mas rapidamente nos apercebemos da sua importância e significado. O tema deste artigo está relacionado com outros tópicos importantes da biologia, como imunologia, desenvolvimento embrionário e cancro.

O artigo pode também gerar discussões sobre temas como o trabalho quotidiano dos cientistas, a partilha de conhecimentos entre laboratórios ou as novas tecnologias que permitem a medição e comparação das velocidades de diferentes linhagens de células.

Algumas perguntas para avaliar a compreensão do tema:
1) Qual é a importância do estudo da motilidade celular?
2) Qual é a relação entre motilidade celular e migração celular?
3) Qual é o objectivo do Campeonato do Mundo de Células?
4) Porque é que a forma da pista de corrida do Campeonato do Mundo de Células muda de um ano para o outro?
5) Dê exemplos de células cuja motilidade interessa inibir, ou, pelo contrário, aumentar.
6) Algumas células fazem movimentos programados e parecem não precisar de estímulo para se moverem. De que tipo de células se trata? Porque se considera que elas representam um problema?
7) Usando a pista de corrida, como poderá provar o efeito de um medicamento na motilidade celular?

Ana Molina, IES Gil y Carrasco, Espanha

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